sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Contos Sobrevivencialistas - A Escapada

Sou sobrevivencialista. Mas, certa vez, ouvi uma frase que é a essência do que aconteceu comigo. O homem planeja, Deus ri. Eu costumava viver em uma grande cidade brasileira, mas, por perceber que a cidade grande é o pior lugar para se estar em cenários de crise, me mudei para uma propriedade afastada da cidade e cercada por matas, e, aos poucos fui construindo meu refúgio. Coloquei nele tudo o que achava que eu iria precisar, caso eu tivesse que ficar durante muito tempo. Consegui também um trabalho à distância, de modo que eu raramente precisava sair da região onde me encontrava. E, o mais importante, consegui convencer a minha companheira de que tal mudança iria fazer muito bem para a gente.
Um certo dia, porém, fui obrigado a ir à cidade grande. Tive alguns problemas relativos ao trabalho, que só poderiam ser solucionados pessoalmente. Resolvi ir de ônibus, pois carros em grandes cidades são muito mais uma fonte de aborrecimento do que de locomoção. Entre outras coisas, levei um transmissor de rádio, pois eu e minha mulher combinamos que depender só de celular poderia ser um risco ainda mais que, na região do refúgio, o sinal era, na melhor das hipóteses, muito fraco.
Fui, determinado à resolver tudo o mais rápido possível e logo voltar para casa. A distância entre a cidade grande e o refúgio era de uns 65km. O ônibus demorava um pouco mais de uma hora para cumprir o trajeto por causa do trânsito complicado nas cercanias da cidade. Mas, em dias e horários específicos, a viagem poderia durar até quatro horas.
Cheguei a cidade e resolvi tudo sem maiores percalços e, no começo de uma noite bastante quente, já estava começando a volta para casa. Mas, quando estava no metrô, indo para o terminal rodoviário, faltou energia. Num segundo, o vagão, lotado, estava claro como a luz do dia. No segundo seguinte, a escuridão caiu como uma bomba. Parecia que, por alguns momentos, eu tinha ficado cego. Mas, logo vi as telinhas dos celulares e tablets dos outros passageiros, assim como a fraquíssima luz de emergência do vagão. Aos poucos, o metrô foi diminuindo a velocidade, até parar. Muitos começaram a resmungar e reclamar. Nessas situações, a empresa que toma conta do metrô avisa que funcionários logo serão enviados às composições paradas para auxiliar e informar os passageiros. Como a energia acabou, o sistema de ar condicionado também parou, e a temperatura começou a subir, assim como a impaciência das pessoas, principalmente aqueles que estavam em pé, como eu. Mas, depois de uns quinze minutos, chegaram finalmente os funcionários. Eles abriram as portas, e, com lanternas, foram guiando as pessoas através dos túneis escuros até a estação. Lá chegando, vi que somente as luzes de emergência estavam funcionando. Conversando com outros passageiros, descobri que a falta de energia no metrô estava se tornando desagradavelmente comum, mas que nunca havia durado mais de cinco minutos. Sair do metrô e caminhar pelos trilhos era algo sem precedentes. Perguntei porque estes problemas não estavam sendo noticiados na imprensa. E disseram que, em ano de grandes eventos, coisas insignificantes como esta, deveriam ser empurradas para debaixo do tapete. Conversando mais um pouco, decidimos esperar a energia voltar. Para mim, o metrô era a melhor maneira de chegar ao terminal rodoviário. Então, surgiram comentários de que o problema de energia dessa vez não estava restrito ao metrô. Muitos estavam dizendo que a cidade estava totalmente sem energia elétrica, causada por sabotagem das redes de alta tensão. Traficantes de drogas, revoltados com os recentes envios de seus chefes para presídios federais, resolveram dar uma lição que a cidade e o governo jamais esqueceriam e dinamitaram várias torres e subestações de energia. O problema era seríssimo, e não seria solucionado tão cedo. Achei que alguém estava com a imaginação fértil demais, mas por outro lado, o 11 de Setembro assim pareceria delírio, até acontecer. Imediatamente tentei ligar para a minha esposa, mas não consegui. O sinal estava muito fraco. Tentei usar o radio, mas seria impossível transmitir alguma coisa embaixo da terra.
 Resolvi sair para a rua, para tentar contato com minha mulher via rádio e conferir se era realmente verdade essa história maluca. Ao chegar lá, vi que estava tudo muito escuro. As únicas luzes que existiam eram as dos faróis dos carros parados nos congestionamentos e das motos passando entre eles. Nas calçadas, muita gente andando, conversando, tentando entender o que estava acontecendo. Comecei a achar que a pane era realmente mais séria, mas me recusava ainda a acreditar em algo tão incrível quanto sabotagem. Novamente não consegui contato de rádio, pois como era uma área central da cidade, certamente os prédios estavam bloqueando o sinal. Tentei usar novamente o celular e novamente não consegui nada. Rede ocupada, dizia a mensagem de voz da operadora. Resolvi então procurar por um lugar mais alto. Vi um prédio comercial, que parecia ser o mais alto da região. Cheguei à portaria, expliquei a situação à um dos seguranças, e entendendo que não estávamos vivendo uma situação normal, deixou-me subir. Embora eu estivesse em boa forma, subir mais de 40 andares foi bastante difícil, especialmente porque havia muita gente descendo e estava escuro.Além disso, muita gente estava presa nos elevadores e como as equipes de resgate não chegavam, os próprios ocupantes do prédio tentavam tirar as pessoas de dentro deles. Luzes de emergência forneciam alguma iluminação, mas bem fraca. Ao chegar ao topo, finalmente consegui contato com minha esposa. Ela me disse que na tv e na internet não se falava de outra coisa. Que realmente foram atentados, que toda a cidade e cercanias estavam sem energia, e que, em face de tamanho acontecimento, as forças armadas estavam rumando para a cidade. Também me falou que todas as principais vias de acesso e de saída estavam bloqueadas por congestionamentos gigantescos. As pessoas, ao saberem da natureza terrorista do blecaute, ficaram em pânico e tentaram chegar em casa a todo custo.Acidentes de trânsito e mortes já haviam sido registrados. A polícia e os bombeiros estavam impedidos de agir, pois a maioria de seus agentes e veículos não tinham nem como sair dos quartéis, ou estavam presos nos congestionamentos.Os poucos que conseguiam se locomover o faziam porque estavam de moto. Em alguns locais, grupos de bandidos se aproveitaram da confusão e começaram a agir. Pessoas nos carros e nas ruas foram assaltadas, espancadas. Casas e prédios começaram a ser invadidos, depredados e, muitas vezes incendiados. Ainda segundo minha esposa, muitos analistas ficaram impressionados com a rapidez com que a cidade estava se desestruturando. Falei para ela então que iria tentar sair de lá a qualquer custo, e que entraria em contato em horários pré-determinados, para economizar a bateria do rádio. E que ela tentasse ficar tranquila se eu não cumprisse o horário, pois poderia estar em áreas nas quais a comunicação seria impossível. Nos despedimos e, antes de voltar para a rua, procurei analisar a situação. Tinha comigo alguma comida e água. Daria para não passar fome e sede por pelo menos um dia, racionando bem o consumo. Tinha também alguns itens que poderiam ser úteis, como fósforos, um mapa da região, canivete e lanterna, além de alguma quantia em dinheiro. Para voltar ao meu refúgio, teria que passar por áreas urbanas, densamente povoadas, até chegar à região das matas, a uns 30 km de onde eu estava. Pensei em esperar o dia amanhecer, para ter uma ideia melhor de como estaria a cidade. Imaginava que não seria difícil encontrar um local para dormir naquele prédio, ainda mais que os seguranças certamente estariam mais preocupados com suas famílias do que qualquer outra coisa. Mas, ao mesmo tempo, a cidade estava ficando mais perigosa a cada minuto.
Subitamente, tive uma ideia. Tinha alguma experiência com barcos e, poderia atravessar a maior parte da zona urbana pela água, e desembarcar quase na borda da região das matas. Não fazia ideia de como conseguir um, mas me pareceu muito menos perigoso do que atravessar quilômetros de uma região que estava totalmente instável. Estava a poucos quilômetros de um ancoradouro de barcos particulares, o que era bom. Mas ficava em direção totalmente oposta em relação ao local em que eu queria chegar. Resolvi partir imediatamente.
Ao voltar para a rua, muitas pessoas ainda estava dentro, ou junto de seus carros, na esperança de que a energia voltasse, apesar das notícias. Outros carros já tinham sido largados por seus donos. Havia também muita gente nas ruas, nas calçadas. As motos foram obrigadas a parar, pois não havia como passar entre os carros sem atropelas pessoas. Haviam grupos em torno de  pessoas que tinham rádios a pilha, ou celulares que recebiam transmissões de rádio. Muitos resolveram sentar no chão e compartilhar comida e bebida, a luz de velas e lanternas. Outros estavam preocupados com a família, com a falta de comunicações, sem saber que áreas teriam sido atingidas por violência. Era interessante como cada um agia de uma maneira numa situação tão fora do normal como esta. Uns totalmente calmos, e outros totalmente desesperados, mas a maioria num meio-termo, pelo menos por enquanto. Pelo que eu já tinha lido, a população iria perceber que a situação era realmente séria quando começasse a faltar água, quando os alimentos perecíveis começassem a estragar, quando o combustível e o gás começassem a faltar, quando ficasse difícil encontrar alguma coisa nos mercados. E, quando esse momento chegasse, eu gostaria de estar bem longe dali.
Comecei então a caminhar em direção à área onde havia ancoradouros. Quando me afastei do centro da cidade, a concentração de pessoas era menor. Mas a de carros nas pistas continuava quase a mesma. Resolvi acelerar o passo, pois qualquer um poderia ser alvo de pessoas ou grupos de pessoas com más intenções. Após algum tempo, consegui chegar à beira mar. Os navios ao longe eram as únicas estruturas iluminadas. Todo o resto estava escuro, a exceção das luzes dos carros e uns poucos pontos de luz, provavelmente casas e prédios com geradores. Continuei correndo e vi o que pareciam ser algumas confusões. Felizmente estavam relativamente distantes.
Depois de vários minutos correndo, alcancei o ancoradouro e, para minha surpresa, não havia ninguém.  E também não haviam barcos. Parece que muitas pessoas pensaram que sair da cidade pelo mar seria uma decisão correta. Continuei então a correr pois, mais a frente, ficavam os barcos dos pescadores e lá eu poderia ter alguma sorte. A medida que ia me aproximando, vi barcos, e vi pescadores reunidos, conversando. Quando cheguei, perguntei a eles o que achavam sobre tudo o que estava acontecendo e o que eles fariam. Eles me responderam que estavam decididos a esperar, pois achavam que o governo não seria tão incompetente para deixar a cidade sem energia por muito tempo. Afinal de contas, quando alguém grande perde dinheiro, logo as soluções aparecem. Perguntei então se algum deles me levaria para um pequeno passeio, e que estava disposto a pagar bem. Um deles aceitou a minha proposta e me pediu alguns minutos para preparar o barco.
Logo, estávamos navegando, rumo a direção que eu tinha indicado. O pescador me falou que até chegar aonde eu queria, demoraria algumas horas e que o mar estava um pouco agitado. Aproveitei a viagem para tentar entrar em contato de novo com minha esposa. Mas, fiz uma coisa estúpida. Deixei o rádio escapar da minha mão e ele caiu na água. Minha reação foi pular atrás dele. Mas vi que não adiantaria. Mesmo que eu conseguisse pegá-lo de volta, o contato com a água o teria arruinado. Não havia mais nada que eu pudesse fazer. Resolvi descansar um pouco, pois ao chegar ao destino, o barco não teria onde atracar e eu teria que nadar uns 2 km. Mesmo usando um colete salva-vidas, seria complicado por causa da mochila e da temperatura da água, relativamente baixa. Arranjei alguns sacos plásticos para embalar as minhas roupas e o par de botas que usava, assim como o celular, os fósforos, o mapa e a lanterna.
Ao amanhecer, chegamos ao local onde eu abandonaria o barco. Agradeci ao pescador e pulei na água, gelada. Comecei a nadar em direção à praia e, depois de mais de uma hora lutando contra a corrente, consegui chegar lá, esgotado e meio congelado. Vesti as roupas, comi e bebi alguma coisa. Agora, viria a parte menos perigosa, mas, mais difícil. Atravessar 10 km de mata num relevo acidentado até chegar à estrada, e de lá mais 10 km até o refúgio.
Apos demorar quase 8h para atravessar a mata,  pois o terreno era mais úmido e mais acidentado do que eu imaginava, consegui chegar à estrada. Não havia movimento. Deveria ter acontecido alguma coisa de muito séria nos subúrbios da cidade, a ponto de paralisar o tráfego dessa maneira. Mas não demorou muito e logo avistei um carro. Pedi carona, quase pulei na frente dele, mas o motorista me ignorou e seguiu em frente.  Deveria ser um carro de algum local de algumas das residências mais afastadas da cidade, mas que margeavam a estrada. Peguei o celular, mas estava completamente sem sinal. Na hora não liguei muito para este fato. Comecei então a caminhar pelo asfalto. Brincadeira de criança, depois da mata. Em mais 2h, cheguei finalmente ao refúgio. Era impossível de vê-lo da estrada, pois ele ficava a uns 500m da mesma e não tinha uma entrada que fosse facilmente vista. A casa ficava por trás de um morro. Corri até lá, esquecendo todo o cansaço e feliz por estar em casa pouco mais de um dia depois do começo da crise. Peguei minha chave, abri a porta e quase mato de susto a minha esposa. Nos abraçamos e ficamos um bom tempo assim, sem dizer nada. Depois ela me fez tirar as roupas e botas sujas e me preparou um banho. Estava tão cansado que nem prestei atenção em nada. Ao terminar o banho, caí na cama e dormi por mais de 10h. Acordei no outro dia tarde, e foi então que percebi que tinha alguma coisa estranha. Estava silencioso demais, mesmo para uma casa no campo. Saí do quarto e encontrei minha esposa na cozinha, e então ela me contou o que aconteceu enquanto eu lutava para chegar em casa. Os atentados dos traficantes à rede de distribuição de energia elétrica tinham sido só o começo. As organizações criminosas responsáveis pelo tráfico tinham mandado mensagens para a prefeitura da cidade avisando sobre o ataque, mas o prefeito e seus assessores acharam que era algo exagerado e não deram importância. Logo depois, um grupo terrorista, também ligado às organizações criminosas dos traficantes, entrou na principal usina de produção de energia elétrica do país, e plantou algumas toneladas de explosivos, além de manter os funcionários como reféns. Fizeram um comunicado ao governo do país pedindo uma imensa quantia em dinheiro como resgate. O governo achou que era um blefe e mandou uma tropa de elite das forças armadas atacar o local. Afinal de contas, neste país os terroristas são diferentes e prefeririam se entregar à cometer suicídio. Só que os terroristas responsáveis pela detonação dos explosivos não estavam no local e não hesitaram em apertar o botão. Como resultado, mais da metade do país estava sem suprimento de energia, pois a usina, que era hidrelétrica, foi totalmente destruída. A detonação também fez com que bilhões de litros de água que faziam parte do lago formado pela barragem, passassem pela usina e inundassem várias cidades, causando terrível destruição.
A crise definitiva finalmente tinha chegado. Eu acreditava que a natureza é que seria responsável por ela e não os homens. E jamais pensaria que uma crise causada por terroristas e traficantes pudesse acontecer logo aqui. Mas, aí estava a realidade para nos mostrar que nada é impossível, e que estávamos mais vulneráveis do que imaginávamos.

P.S.- Não sou escritor, e acho que a estória acima tem muitas lacunas, muitas falhas. Não é possível prever como uma população reagiria numa situação dessas. Mas tenham em mente que é muito fácil  para um grupo de insatisfeitos, minimamente organizados, desencadear uma crise. Creio que o cenário descrito acima é perfeitamente plausível. E o que me deixa nervoso é que não há, neste país, como impedir tal coisa. É muito fácil comprar ou roubar explosivos. Não há fiscalização. E os grupos criminosos estão cada vez mais fortes, mais influentes. E o mundo está cheio de malucos... A única coisa que podemos fazer é ficar preparados, para o que der e vier. Como já disse em outro post, a crise virá, com certeza. Só não sabemos de onde.

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